Especialistas e donos de lavanderias apontam ações estratégicas para uma otimização da gestão de água frente aos desafios das mudanças climáticas
Por Observatório da Vida Agreste (OVA/UFPE)
Liso como o ventre
de uma cadela fecunda,
o rio cresce
sem nunca explodir.
Tem, o rio,
um parto fluente e invertebrado
como o de uma cadela.
(João Cabral de Melo Neto)
Pois é, João: o rio não exatamente cresceu. Mas explodiu.
Em Toritama, são mais de 3 mil empresas produtoras de jeans e 73 lavanderias (uma de grande porte produz uma média de 120 mil peças de jeans por mês). O número chama ainda mais atenção quando são revelados quantos litros de água são usados, em média, para lavar uma única peça: cerca de 70 litros no processo de tingir, lavar e finalizar o produto.
Com os efeitos da destruição ambiental mundial no clima nordestino, esta é uma configuração insustentável. De acordo com a pesquisadora Cláudia Ribeiro Pereira Nunes (presente no livro Os impactos das mudanças climáticas no Nordeste brasileiro, organizado por Alana Ramos Araújo, Germana Parente Neiva Belchior e Thaís Emília de Sousa Viegas), as regiões Norte e Nordeste do Brasil são as mais vulneráveis às mudanças atuais por serem extremos climáticos nos quais grandes precipitações e/ou longas estiagens são comuns. No artigo As mudanças climáticas a partir da implantação de empresas de capital estrangeiro no Nordeste: estado regulador? Cláudia analisa os aspectos econômicos desse cenário e afirma: todos os empreendimentos sofrerão direta ou indiretamente com o aquecimento global e suas consequências. As perdas econômicas são inevitáveis. “Particularmente, de modo direto, sem qualquer adaptação, as empresas terão dificuldades em manter os atuais níveis de produção e eficiência operacional e, de modo indireto, os consumidores serão mais exigentes, examinando minuciosamente suas práticas sustentáveis”, escreve.
A pesquisadora chefe de gestão ambiental da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) Soraya El-Deir chama atenção para um fato importante: essas mudanças climáticas não se configuram em algo para o futuro — estão acontecendo agora. “Estamos vivenciando no nosso dia a dia o que era previsto para daqui a 20 anos”. É agora também que já se registra em algumas lavanderias a prática do reuso, vista como uma das mais interessantes no sentido não só de poupar água, mas de assegurar um descarte responsável no Capibaribe. A questão é que apenas as empresas maiores realizam esse processo no qual parte de resíduos sólidos (como cloro, detergente, sabão, corantes e amaciantes) é separado e posteriormente tratado.
Lavanderias de maior porte, como a Céu Azul, conseguem reutilizar mais de 80% da água. Mas essa não é uma realidade em diversas empresas que funcionam na ilegalidade (foto: Maryane Martins).
Para o reuso nas lavanderias, a água utilizada passa primeiramente pelo sistema de gradeamento ou filtragem. Na segunda etapa, a água é transferida para o tanque de equalização onde ocorre a homogeneização dos efluentes. Na terceira, são retiradas as impurezas no tanque de decantação por meio de produtos químicos (cal, sulfato de alumínio). Após esse processo, o lodo têxtil, resíduo que fica no tanque após a decantação, é colocado em um leito de secagem. Esse processo dura em média 60 dias e, após esse período, o lodo é recolhido por caminhões e destinado a um aterro sanitário. A água tratada volta a ser utilizada na lavagem do jeans.
Lodo têxtil proveniente de insumos químicos utilizados na lavagem do jeans (foto: Maria Júlia Vieira).
É o caso da lavanderia Céu Azul, que reutiliza 80% da água consumida na lavagem das peças a partir de um sistema de tratamento dos insumos. Pedro Henrique, proprietário da empresa, diz que a parte não reutilizada na lavagem após o tratamento vai diretamente para o Rio Capibaribe. Essa mudança no sistema de tratamento de água da empresa ocorreu a partir de 2004, com a formalização do Termo de Ajuste de Conduta (TAC) firmado entre o Ministério Público de Pernambuco (MPPE), a prefeitura municipal e assinado pelas lavanderias. Com esse termo, 77 empresas se comprometeram a uma adequação tecnológica a fim de evitar a poluição e o descarte irregular de resíduos sólidos. Esse TAC foi substituído pela Lei Municipal 1643/2018, a chamada Lei das Lavanderias (documento completo no link). De acordo com a Secretaria de vigilância sanitária, 63 lavanderias se comprometeram fazer o reuso da água seguindo o novo documento.
Outra lavanderia que aposta no reuso da água é a LGN. Fundada há 17 anos, a empresa conta com um sistema de reaproveitamento de até 85% do recurso utilizado. Segundo o proprietário, Luiz Neto, a água que não é reempregada no processo de lavagem do jeans é destinada para irrigação de plantas e limpeza. Com um consumo diário de 70 mil litros de água na empresa, Luiz Neto diz que foi preciso pensar em alternativas para suprir a escassez hídrica na região. A solução encontrada por ele e outros empresários do ramo de lavanderias foi a perfuração de poços artesianos, além do abastecimento por caminhões pipas vindos de localidades vizinhas. É preciso dizer que as duas alternativas são, primeiro, possíveis para quem tem maior recurso financeiro e, segundo, também podem ter impactos ambientais sérios.
No texto Um estudo sobre poços artesianos em Santa Cruz do Capibaribe, o contexto da utilização da água subterrânea no agreste é analisado justamente pelo seu caráter de exclusão social, uma vez que se trata de um processo caro do qual a maioria da população acaba apartada. Já a pesquisa Impactos ambientais causados por perfurações de poços clandestinos — estudo de caso, analisa, no âmbito de Recife, como a perfuração (muitas vezes ilegal) causada pela falta de acesso a água tem um grande potencial destrutivo e está relacionado ainda com o desconhecimento de questões da legislação.
Uma das maiores lavanderias da cidade, a Mamute, fundada há 32 anos, pertence ao atual prefeito do município, Edilson Tavares (MDB). Segundo a pesquisa Índice de desempenho da gestão ambiental (IDGA) aplicado ao setor têxtil: um estudo em duas lavanderias industriais do Agreste Pernambucano (2019), ali são utilizados 300 mil litros de água em cada um dos três turnos diários (6h-14h; 14h-22h; 22h-6h) da empresa. No entanto, o diretor da empresa, Luiz Carlos de Souza, informa que hoje gasta bem menos que a quantidade mostrada na pesquisa citada: seriam 50 mil litros de água por dia. Essa queda, segundo o próprio, aconteceu por conta da pandemia. A água usada pela empresa vem do Rio Capibaribe por meio de barragem privada e ainda de poços artesianos e da estrutura pública da Compesa. A estação de tratamento de efluentes consegue reaproveitar de 85% a 95% do recurso. O restante também vira resíduo sólido e é destinado ao aterro sanitário .
A pesquisadora Soraya El-Deir diz que a indústria têxtil é uma cadeia complexa com diferentes potenciais de impacto a depender das tecnologias utilizadas. Apesar de todo o cenário preocupante apresentado por diversos estudos sobre emergência climática, ela aposta em um futuro menos sombrio. “O que eu percebo a médio e a longo prazo é que, cada vez mais, nós vamos ter tecidos inteligentes e que terão maior resistência. Por isso, usaremos menos recursos naturais. Então se apostarmos que as tecnologias sustentáveis vão avançar no polo têxtil do Agreste e em outros segmentos da sociedade, migraremos para uma sociedade sustentável. Eu tenho certeza que isso vai acontecer, como também tenho certeza do papel definidor das políticas públicas e das universidades trabalhando em prol da sociedade.”
Soraya El-Deir, da UFRPE, diz que tecidos inteligentes são uma das saídas para uma indústria menos poluente.
Outra alternativa viável para as lavanderias é apontada por Hilário Siqueira, autor da dissertação As lavanderias de jeans de Toritama : uma contribuição para a gestão das águas, defendida no mestrado de Gestão Pública para o Desenvolvimento do Desenvolvimento do Nordeste (UFPE). O autor defende em sua pesquisa uma gestão ambiental de recursos hídricos nas lavanderias a partir da manutenção do aprovisionamento e adaptação de recursos, conservação do patrimônio natural, bem como uma renovação dinâmica de recursos naturais. Essas alternativas só serão possíveis se as empresas cumprirem os requisitos legais relacionados ao meio ambiente.
No Brasil, empresas como a Riachuelo se destacam por otimizar a gestão de água no processo de fabricação de jeans a partir de tecnologias como o ozônio, que permite a limpeza e o clareamento das peças sem o uso da água e químicos, chegando a reduzir o consumo na produção do jeans para 12 litros de água. Já em processos mais avançados, a fábrica consegue reduzir o consumo para apenas três litros por peça.
Nos níveis estadual e municipal, o Rio Capibaribe tem o monitoramento das suas águas realizado pela Companhia Pernambucana de Recursos Hídricos (CPRH) juntamente com a Secretaria Municipal de Meio Ambiente. Com o objetivo de mitigar os impactos ambientais, os proprietários das lavanderias são orientados pela Secretaria de Meio Ambiente sobre quais procedimentos são necessários para a regularização dos empreendimentos junto à CPRH e assim obter o licenciamento ambiental. O órgão informa que exige: estrutura física ideal para funcionamento da lavanderia; gerenciamento e destinação de resíduos sólidos (lodo, cinza, e embalagens de produtos tóxicos); tratamento da água; manutenção dos tanques; controle da emissão de fumaça devido à queima da algaroba; renovação da licença ambiental. Sem essas normas, a lavanderia pode ser fechada.
O livro Os impactos das mudanças climáticas no Nordeste brasileiro está na íntegra aqui.
Disponível em: https://marcozero.org/propostas-para-adiar-o-fim-de-um-mundo-agreste/