Crise de ansiedade em alunos acende alerta para cuidados com saúde mental; especialistas apontam que escola tem papel relevante no apoio
No Recife, 26 adolescentes foram socorridos após passarem mal com sintomas como taquicardia. Psicóloga e pedagoga apontam importância do diálogo e da convivência social.
Por Katherine Coutinho, g1 PE
Alunos de uma escola estadual do Recife foram atendidos, no dia 8 de abril, com sintomas de crise de ansiedade. Alguns fenômenos na psicologia podem ser desencadeados de forma coletiva, sem uma única causa específica, e servem de alerta para questões ligadas à saúde mental, segundo especialistas ouvidos pelo g1. A escola tem um papel importante no auxílio a esses jovens.
Psicóloga, doutora em educação e professora da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Anna Paula Brito apontou que existe um contexto social que precisa ser levado em consideração, que afeta não só os estudantes, como professores e pais. Tal contexto é importante para chegar a soluções.
"Existe uma cadeia aí, a gente viveu um momento de crise muito grande, de crise social, na humanidade. [...] Aumento do desemprego, a crise econômica que a gente está vivendo, tudo isso faz com que a gente tenha a vida afetada, além da pandemia, com a morte de pessoas próximas. Nós ficamos dois anos com a sombra da morte junto da gente. Tudo isso não tinha como não promover um desequilíbrio emocional. Um episódio desse [como o da escola] para a gente é um sinal", disse.
O caso aconteceu na Escola de Referência em Ensino Médio (Erem) Ageu Magalhães, em Casa Amarela, na Zona Norte. O Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) informou que os estudantes apresentaram sudorese, saturação baixa e taquicardia, foram atendidos no local e não precisaram serem transferidos para hospitais (veja vídeo acima).
"As emoções têm um caráter contagioso. Quando você chega a um berçário e um bebê começa a chorar, é comum que os outros bebês chorem. Não é que a ansiedade seja a emoção, mas ela se expressa através das emoções", disse a professora da UFRPE.
Anna Paula Brito aponta que uma característica forte do adolescente é que a identidade dele se constitui frente ao grupo de amigos, inspirado em ídolos. "Esses adolescentes foram privados do convívio com os seus colegas e já estavam vivendo um movimento de reclusão, trancafiados em seus quartos com seu celular. Isso terminou sendo agravado com a pandemia", apontou.
"Perdemos nossos espaços de escola e nossos espaços de manifestação cultural, de arte e de lazer. A gente perdeu tudo de uma vez: contato social, lazer, cultura, arte e escola como espaço de interação social", disse.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que a ansiedade afeta 18,6 milhões de brasileiros. Ainda segundo a instituição, a Covid-19 contribuiu para que esses transtornos mentais se agravassem.
"Para você lidar com uma emoção, você precisa ter clareza do que você está sentindo. Então, muitas vezes, eles não conseguem nem mesmo identificar a emoção. As ansiedade e angústias que a gente sente são muito gerais. [...] Esse adolescente precisa encontrar um espaço para identificar aquela emoção, dar nome ao que está sentindo", declarou Anna Paula.
"Esses professores viveram também momentos dificílimos. Quando eles voltam para a escola, eles também voltam com essa carga. Ninguém está 100%: nem os professores nem os alunos", disse.
Diálogo fundamental
Tanto para a professora da UFRPE, quanto para a pedagoga Patrícia Queiroz, o caminho para lidar com a ansiedade, como a vista na crise coletiva no Recife, e com os reflexos da pandemia sobre os estudantes passa pelo diálogo.
"A nossa sociedade foi construída em cima do paradigma do penso, logo existo. E é claro, pensar é fundamental, mas as nossas emoções nos constituem tanto quanto o pensamento e a gente relega a segundo plano as nossas emoções, o nosso corpo. E isso causa desequilíbrio na nossa saúde mental, na nossa saúde emocional. Isso é muito sério, porque tem consequências não somente no desempenho acadêmico, mas na vida como um todo", disse Patrícia.
Além de pedagoga, Patrícia é diretora da Clínica Social da Associação Brasileira de Psicopedagogia do Rio de Janeiro e consultora pedagógica do Laboratório Inteligência de Vida, programa que oferece suporte para implantação de educação socioemocional em escolas.
"É preciso criar um espaço seguro de fala e de escuta dentro da comunidade escolar, a partir do qual esses estudantes possam compartilhar as suas emoções e sentimentos sem medo e tendo também a oportunidade de serem acolhidos nesse processo", declarou Patrícia.
Crise de ansiedade atinge alunos no Recife — Foto: Reprodução
A escola, apontou a pedagoga, um lugar que pode garantir essa possibilidade do encontro desses jovens para que, entre eles mesmos, possam compartilhar as angústias da idade.
"Nós somos não só uma mente pensante, mas um corpo que sente, que condensa essas angústias, que incorpora mesmo essas pressões sociais e acadêmicas", disse Patrícia.
"Nesse sentido de compartilhar as angústias, acho importante a gente fazer isso de diferentes formas, diferentes linguagens dentro do espaço escolar: grupos de conversa, colaborações até textuais mesmo onde eles possam elaborar o que estão sentindo e pensando sobre esses temas sensíveis, e outras linguagens que possam colocar no mundo essas emoções, como a teatral", declarou a pedagoga.
Provas e ansiedade
Crise coletiva de ansiedade aconteceu em meio ao período de provas — Foto: Reprodução
A crise coletiva de ansiedade surgiu em período de provas, as primeiras desde o retorno das atividades presenciais na rede estadual em meio à pandemia da Covid-19, conforme apurado pela TV Globo na unidade de ensino.
"A visão sobre as avaliações na nossa sociedade é sempre uma visão um tanto quanto ansiogênica. Então, é comum, não necessariamente normal, que eles vejam esse momento da avaliação como um momento que gera ansiedade", apontou Patrícia.
Uma forma de ajudar a lidar com isso é desenvolver junto aos alunos um processo de apropriação da própria aprendizagem.
"É importante ter um espaço para cuidado com o socioemocional de forma contínua, abarcando não só esse momento da avaliação, como outros. Não adianta só trabalhar na hora da prova essa ansiedade, porque essa ansiedade é conectada com vários outros fatores", lembrou a pedagoga.
É preciso conectar o processo de aprender com o de avaliação e entender que essa prova dentro da escola pode ser uma forma de lançar luzes sobre as próprias habilidade e dificuldades acadêmicas do problema.
"Essa visão pode ajudar a acalmar esses ânimos e na reestruturação dos estudos. Então, é quase que um feedback. Ele vai entendendo no que precisa investir bem, no que não estou indo bem no meu processo de estudo. E também tem a ver com autoconhecimento: não é só conhecer o conteúdo das disciplinas, mas olhar para si dentro do processo", disse Patrícia.
Se um estudante sabe todo o conteúdo, mas fica nervoso, pode esquecer os conteúdos da prova. Daí, a necessidade de trabalhar continuamente a questão emocional.
"Quando a gente está dentro da escola, não está ensinando só para dentro da própria escola, para uma profissão. A gente está ensinando para a vida. Então, a gente vai aprender as habilidades essenciais à vida", disse Patrícia.
Estudantes desacostumados com sala de aula depois de terem assistido a aulas remotas — Foto: Ivan Aleksic/ Unsplash
Arte que transforma
A arte é outros dos caminhos para que os alunos lidem com as emoções, segundo as especialistas, e ela deve estar presente tanto na escola, como fora dela.
"Nem sempre as pessoas conseguem expressar só pelo diálogo, só pela palavra. Então, encontrar outras formas de expressão das emoções. Aí entra a cultura e as artes", disse a professora da UFRPE.
"A arte é interessante, porque tanto me permite expressar os sentimentos, quanto aliviar as angústias. Então, quando estou ali em um cinema, estou ali vivendo um show, eu estou também não só expressando. Não é só a arte de eu estar ali no grupo de teatro, de estar desenhando e pintando, mas também no sentido de viver experiências artísticas", pontuou Anna Paula.
A arte pode ajudar a dar sentido a tudo que está se vivendo. "Tudo aquilo que eu não dou sentido, aquilo vai me devorando por dentro. É preciso dar sentido às emoções, a essa vivência. Não dá para a gente negar o que a gente viveu. É preciso que se fale sobre o que viveu e se comece a dar sentido a tudo isso, as tantas mortes, as tantas situações que presenciamos", declarou a professora.
Apesar de todos esses pontos, Anna Paula ressaltou que é preciso identificar quais são as pessoas que só com o diálogo, com a arte vão ficar bem, e quais adolescentes que de fato vão precisar de um acompanhamento mais de perto.
"Na escola, a gente tem profissionais de pedagogia, de psicologia. É fazer conversas sem essa cobrança de prova. A perspectiva conteudística, no primeiro ano, não deveria ser o ponto principal", defendeu.
Readaptação
Dando aula também para professores, Anna Paula contou que o retorno às salas foi marcado, muitas vezes, por uma ausência de um processo de readaptação. Ao retornar como se "nada tivesse acontecido", professores enfrentaram também dificuldades.
Antes mesmo de haver a crise coletiva, a especialista apontou ter ouvido inúmeros professores falando de questões de indisciplina, de "como estava sendo impossível fazer esses alunos passarem uma manhã ou uma tarde inteira na sala de aula fazendo duas atividades e participando". Isso poderia ter sido encarado como um alerta também.
"A indisciplina começou a ser grande e os professores dizendo que 'esses alunos desaprenderam estar em sala de aula'. Seria necessário uma readaptação. Não foi pensada uma readaptação para os estudantes à sala de aula, nem para os professores", disse a psicóloga.
"Esses professores sofreram toda essa pressão profissional e eles também estão abalados. Mas eles não podem ter uma crise na escola, eles têm de star lá. Esses sentimentos estão lá enjaulados, até nos professores".
Link: https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2022/04/16/crise-de-ansiedade...